Alípio Graça, um guardião de memórias 

Artesão ouriense recria património edificado da terra que o viu nascer 

Alípio Graça é um guardião de memórias. Na garagem de casa, transformada num espaço expositivo informal, recria em miniaturas de madeira os edifícios mais emblemáticos do concelho de Ourém. Diz que não é artista, mas o rigor, a dedicação e o amor pelo património local contam outra história 

CARLA PAIXÃO 

No coração de Ourém, numa garagem que mais parece um santuário da memória, Alípio Graça — um homem de 83 anos e meio (sim, a precisão na idade é uma questão de honra) — dedica-se, há décadas, a replicar o património edificado da sua terra natal em miniaturas de madeira. Não se considera artista. A sua obra nasce da habilidade paciente, da criatividade inesgotável e, acima de tudo, de um amor profundo por Ourém. A rádio toca baixinho e o clarinete repousa a um canto. O ambiente é de harmonia, num lugar onde o passado persiste e respira, e onde o presente e o futuro continuam a inspirar esperança. 

Alípio Graça nasceu e cresceu em Ourém, numa época em que a vida era marcada pela simplicidade e por algumas privações. “Fazia bonequitos,” recorda, com os olhos brilhantes e um leve sorriso no rosto. “Este aqui, fiz quando tinha 12 anos. Não consegui fazer as mãos, cortei-lhe os braços.” Eram outros tempos. “Não havia brinquedos para comprar. Os barquinhos eram de carrasca de pinho. Pegava na navalha, cortava, punha uma bandeirinha e lá seguia o barco pelo ribeirinho.” As outras brincadeiras passavam por fisgas, moinhos feitos com folhas de eucalipto e bolas de trapo.  

“Jogava futebol, descalço, com uma bola feita de meias velhas. Dava cabo dos dedos, mas era o que havia. Andei descalço até aos nove anos. Os primeiros sapatos que tive, umas botas, foram feitas pelo sapateiro do bairro, por encomenda do meu irmão mais velho”, conta. 

Quando ouvimos as suas histórias, sentimos-lhe a ternura nas palavras. Mas, não é por ter saudades. Alípio Graça não romantiza o passado. “Muita gente diz que ‘antigamente é que era bom’, mas eu não concordo. Cheguei a sair da escola para ir à cantareira à procura de pão, e não havia nada”, recorda. 

De Ourém, Alípio Graça partiu ainda jovem para Moçambique, antiga colónia portuguesa. “Estudei até ao segundo ano na escola industrial e tirei um curso de eletricidade.” Tornou-se eletricista e foi também lá que casou e onde nasceu o seu filho. “Gostava de lá estar” e planeava seguir para África do Sul, mas a conjuntura política e económica obrigou-o a regressar a Portugal. “Não sei se foi melhor ou pior. Mas cá estou.” 

A experiência de África permanece para além das lembranças mais emocionais. “Fiz muita tralha [artesanato] lá, mas ficou tudo em Moçambique.” Menos as aprendizagens que adquiriu e que lhe permitiram ter uma profissão qualificada. Ainda hoje, é chamado para pequenos biscates. E não se nega. “Gosto de me sentir útil. Não gosto de estar parado.” 

(Artigo completo na edição de 26/09/2025)