Sobre escrever sem muros à vista
Por Mafalda Cardoso
Esta é a primeira carta que recebes minha.
Num mundo rápido, caótico e perdido em si mesmo, escrever-te torna-se um ato revolucionário.
Implica parar, pensar, voltar atrás e tentar de novo. Escolher um caminho, levá-lo até ao fim.
Não ter retorno imediato. Neste caso, talvez não ter retorno de todo.
Tenho pensado no que podem ser pequenos atos revolucionários no mundo atual (esse, perdido em si mesmo). Coisas corriqueiras, que por vezes nem nos apercebemos da força secreta que têm:
Cozinhar (em vez de mandar vir comida);
Arranjar (em vez de comprar novo);
Caminhar (em vez de ir de carro);
Visitar (em vez de mandar mensagem);
Lembrar (em vez de ir pesquisar no google);
Observar (em vez de encolher a visão nos ecrãs);
Aponto-as em jeito de diário de sobrevivência.
Tenho também tentado prestar mais atenção ao ritmo do que me rodeia. Estamos tão emaranhados nas nossas rotinas que pomos a água a ferver na chaleira para o arroz cozer o mais rápido possível e, enquanto isso, lavar a loiça de ontem, que ficou por lavar por já não termos tido tempo. A ideia de que o dia passa passa passa e no fim não passou de uma lista de tarefas riscadas – nenhuma delas “abraçar alguém”, “respirar fundo três vezes”, “tomar conta de mim”.
Já não sei onde estou a ir com tudo isto. A verdade é que estou com pressa.
O dia já vai no fim e vou receber uns amigos para jantar. Para não perder tempo, encomendámos frango. Marcámos para as 19h30, cedo o suficiente para termos tempo de descansar e chegar a horas ao trabalho amanhã. Enquanto o arroz coze na água fervida, sento-me para escrever uma crónica rápida (rápida, porque não há tempo), na esperança de a enviar a tempo de ser publicada. A loiça do almoço acumulou-se para o jantar, mas talvez enquanto os amigos fumam o “cigarro de depois da refeição” eu aproveite para a despachar – para não perder tempo amanhã, e poder perder tempo com outras coisas.
A meio desta crónica recebo uma chamada. É o meu pai. Faz anos hoje e ainda não tinha tido tempo para lhe ligar. Deixo chamar quatro vezes antes de atender, porque estava a meio do raciocínio e não podia perder-lhe o ritmo. Na conversa, ele diz-me: “o tempo está a ficar esquisito”.
Não podia deixar de concordar.
A diferença é que ele se refere ao verão que está a querer ir embora, e eu refiro-me a esta corrida de estafetas em que a estafeta é sempre passada a mim. Tempo.
Terás tu tempo para ler esta carta até ao fim?
