Olhar com olhos de ver
A ideia de que temos de olhar o mundo que nos rodeia, em vez de apenas acreditar em fantasias que nos contam, é muito antiga. Pelo menos tão antiga como o célebre filósofo Platão, que viveu em Atenas há quase 2.500 anos.
A Alegoria da Caverna é um texto incontornável para todos os estudantes no 10.º ano, quando começam a estudar Filosofia e aprendem a questionar o mundo que os rodeia. Nessa “história”, incluída num livro que se chama “A República”, Platão imagina um grupo de pessoas que cresceu sempre dentro de uma caverna e não conhece o mundo real. Mas ouve os sons que chegam do exterior e vê alguns reflexos e sombras de um mundo que não conhece diretamente. Na cabeça dessas pessoas, o mundo surge como uma coisa imprecisa, confusa e mesmo assustadora. Quando são forçados a “sair da caverna” sentem receio e incómodo por entrar num mundo que não corresponde às suas ideias. Tanta luz faz doer os olhos habituados à penumbra da gruta e tentam proteger-se, recusando a realidade.
A Caverna de Platão veio-me à memória a propósito de conversas improváveis, ora ao vivo, ora digitais, ora com pessoas que conheço, ora com completos desconhecidos, com a linha comum de tentarem apresentar-me, como se fosse real, um mundo que não corresponde ao que eu mesmo consigo observar.
Por exemplo, há dias alguém argumentava com uma estatística absurda, que contava para cima de dois milhões de imigrantes ilegais a viver em Portugal. Dois milhões de ilegais?! Fiquei na dúvida se aquela pessoa que falava comigo acreditava mesmo no que estava a dizer ou se apenas se limitava a repetir sem pensar o que tinha lido algures na internet. Por vezes acontece que se publicam vídeos e textos com piadinhas absurdas e há gente que, sem “atingir” a intenção cómica, acaba por os tomar por verdadeiros. Fiquei na dúvida se o meu interlocutor é ingénuo, ou se tem mesmo intenções escondidas.
Diziam, também, que os imigrantes (os tais dois milhões de ilegais, suponho eu) ao chegar a Portugal recebem casas grátis e subsídios para se manterem sem trabalhar. E quem afirmava isso parecia acreditar no que estava a dizer. Então eu dou comigo a imaginar como seria o processo burocrático de candidatura a esses apoios. Imaginemos: um imigrante ilegal aterra no nosso país, dirige-se sem documentos a um balcão da Segurança Social, preenche uns impressos, faz prova da irregularidade da sua situação, e automaticamente recebe todos esses benefícios? Ou será que tinha de esperar umas semanas que o processo fosse para aprovação? Como é que alguém sem documentação podia fazer isto tudo? É impossível, claro. Para um apontamento de cómico do absurdo, ainda podia passar. Mas o drama é haver quem acredite nestas fantasias e continue a insistir nelas, passando a mensagem ao idiota seguinte.
Todas estas conversas ocorriam, como se adivinha, num contexto de apresentar a imigração como uma catástrofe, exagerando nos tons e nos pormenores e que me faz sempre confusão porque não corresponde ao mundo que eu consigo observar. Na prática, vejo muitos imigrantes e muitos emigrantes, e não consigo encontrar diferenças entre os portugueses que se espalharam pela Europa e pelo mundo e os imigrantes que vieram para Portugal ocupar postos de trabalho que são necessários.
Outro exemplo, também vivido na primeira pessoa, é o alarme que se criou sobre a situação na saúde. Se déssemos ouvidos aos comentários que correm pelas redes sociais, o hospital de Leiria seria um caos completo.Na prática tenho observado exatamente o contrário, partindo da experiência pessoal. Mesmo sendo uma estrutura enorme, funciona com uma eficácia impressionante, com enorme profissionalismo. Não encontrei lá esse monstro assustador que inventaram.
Aparentemente é possível muitas pessoas acreditarem em coisas inacreditáveis. O mundo em que se movem aparentemente não é um mundo real, e a realidade que julgam estar a ver afinal não passa da ficção que leem nas redes sociais. Há muita mentira a circular e há muita gente a cair na armadilha.
Claro que o mundo real tem defeitos, claro que é preciso estarmos atentos às falhas, tanto no tema das migrações, ou da saúde, como em outros. Seja para irmos superando os defeitos, seja para anteciparmos e precavermos possíveis dificuldades. Mas felizmente o mundo real está longe dos cenários de catástrofe que andam a inventar para manter as pessoas assustadas e para capturarem votos descontentes em eleições com este tipo de propaganda.
Platão continua a mostrar-nos que o primeiro passo para sermos esclarecidos é observar o mundo, sem nos limitarmos a repetir narrativas alheias como se não tivéssemos cabeça para pensar.
JF