Histórias da carochinha

Editorial por JF

A História da Carochinha não tem nenhuma especial lição de moral. Começa com um cenário impossível de um inseto a varrer a cozinha, a achar uma moeda e ficar à janela na esperança de se casar. E termina com a tragédia de um rato, noivo de um inseto, a morrer numa panela de sopa. A parte final até é possível, um rato pode realmente cair numa panela de sopa e afogar-se.

A história tem sido contada e adaptada vezes sem fim, com o fim único de nos divertir com um enredo simples e fundamentalmente sem grandes verdades. Toda a gente percebe que é uma invenção, uma imaginação à solta e não ocorre a ninguém questionar se é verdade ou não.

Nos nossos dias (na verdade em todas as épocas) há muitas outras “histórias da carochinha” que ganham grande sucesso momentâneo e alimentam uma certa propaganda, servindo de imagem de marca para grupos sociais. A diferença é que muitas vezes a verdade dessa história nem sequer é questionada, mas é levada a sério, como se fosse real.

Tem andado a correr com grande entusiasmo nas redes sociais uma dessas histórias, e percebe-se pelo contexto que há muitas pessoas que acreditam. Em resumo, a carochinha é substituída por um imigrante ilegal, preguiçoso e que não faz nada (ao contrário da carochinha, que varria a cozinha). Recebe um chorudo subsídio (a carochinha é mais modesta, apenas teve a sorte de encontrar uma moedinha enquanto trabalhava), e vive à boa-vida com todo esse dinheiro que o estado lhe oferece grátis. É uma história tão incrível como um inseto que se quer casar com um rato. Conscientemente, todos percebemos que a atribuição de um subsídio (noutras versões da história é uma casa) exige um processo de verificação de documentação e de confirmação que está em condições legais para o receber. Conscientemente, todos percebemos que um “ilegal” não pode simplesmente fazer um pedido de subsídio, porque… está ilegal. Mas nenhuma dessas contradições parece ser importante para quem deseja acreditar naquela história.

A outra parte da narrativa, em geral, é mais credível. Em oposição ao “ilegal” costuma apresentar-se um pensionista que não recebe tanto quanto seria desejável. Isso é tão credível como um rato poder cair na sopa. Sabemos que acontece e sabemos que entra ali na história para a tornar credível.

Ora, se esta é uma história tão sem lógica como a da carochinha, fica estranho que sirva como base para opções políticas. Sim, porque é uma questão política. Sim, há muitas pessoas a decidir o seu voto com base em histórias destas.

Na história da carochinha original, embora não haja nenhum ensinamento especial, há um modelo de sociedade que é apresentado como exemplar. A carochinha é como se fosse uma rapariga, trabalhadora e dedicada, que tem como sonho de vida casar-se logo que possível. É um modelo tradicional que se apresenta inocentemente como sendo um “bom exemplo” para moças casadoiras e para os respetivos pretendentes.

Na “nova história da carochinha” também não se aprende nada, mas promove-se um modelo de sociedade que nos tenta mentalizar contra os estrangeiros, representados como seres malvados que supostamente deveríamos detestar.

Pessoalmente não acredito em nenhuma destas duas histórias da carochinha. Nem na do inseto que se casa com um rato, nem do clandestino que vive na dependência do estado. O problema é que há quem acredite e o problema é que, aparentemente, ser verdade ou ser mentira se está a tornar irrelevante para muita gente.

A verificação de factos é cada vez mais importante e manter pontos de referência credíveis, seja na ciência, seja no jornalismo independente.