O “estômago da cabeça”
A Feira do Livro de Ourém, realizada entre 13 e 23 de abril, apresentou um calendário rico de atividades de celebração do livro e da leitura (em sintonia com as celebrações dos 50 anos do 25 de Abril) e contou com a presença de vários autores portugueses, entre eles Afonso Cruz. Tive a oportunidade de assistir ao encontro, mediado por Carmen Zita Ferreira, em que o escritor conversou com os presentes sobre a sua obra literária. Dessa agradável conversa, ficou a vontade de revisitar excertos de alguns dos seus livros que, por um motivo ou outro, me marcaram e que vou aproveitando nas minhas aulas.
Lembrei-me, assim, de folhear novamente “O pintor debaixo do lava-loiças”, onde encontramos (entre muitas outras passagens brilhantes) a alusão a um “estômago da cabeça” comum a todo o ser humano. Mais precisamente no terceiro capítulo, intitulado “Todos os homens têm três estômagos”, uma das personagens – o coronel Möller – confronta-nos com esta curiosa observação: “Um homem possui três estômagos: um na barriga, outro no peito e outro na cabeça. O da barriga, toda a gente sabe para que serve; o do peito mastiga a respiração, que é a nossa comida mais urgente. Uma pessoa morre sem ar muito mais depressa do que sem água e pão. E por fim há o estômago da cabeça, que se alimenta de palavras e letras. Os primeiros dois estômagos do homem alimentam-se através da boca e do nariz, ao passo que o terceiro estômago se alimenta principalmente através dos olhos e dos ouvidos (…)” p. 18 (Caminho).
A história da Humanidade está, felizmente, cheia de referências a esta necessidade de os seres humanos não se focarem apenas no “estômago da barriga”, como o célebre versículo de Mateus que todos conhecemos “Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus” (1) , um verso do poema chinês de Li Bo “Vende um dos teus pães e compra um lírio” (2) ou ainda uma passagem do texto do Papa João XXIII “Os dez mandamentos da serenidade” que, de forma direta, nos diz o seguinte: “Só por hoje dedicarei dez minutos do meu
tempo a uma boa leitura, lembrando-me de que, assim como é preciso comer para sustentar o meu corpo, a leitura é necessária para alimentar a vida da minha alma”.
Afonso Cruz agarra na mesma ideia e dá-lhe outra perspetiva, transformando-a numa metáfora simples, original, divertida e mais imagética.
Talvez a primeira reação seja a de pensar que, se o “estômago da barriga” não estiver bem tratado, é impossível cuidar do “estômago da cabeça”. Concordo plenamente. Mas será que hoje, em pleno séc. XXI, não cuidamos do “estômago da cabeça” por não conseguirmos alimentar o da barriga? Ou simplesmente nos esquecemos da existência desse estômago que também precisa de “alimento”, ou seja, de palavras e letras? Esta é uma das reflexões que costumo lançar aos meus alunos, a partir da leitura deste excerto, e que, normalmente, resulta numa discussão muito rica e produtiva sobre a importância dos livros e da leitura na vida de cada um.
Fontes:
(1) Mateus 4 – Bíblia Sagrada
(2) O pequeno caminho das grandes perguntas, de José Tolentino Mendonça (2017, Quetzal)
Sílvia Ribeiro
*Professora de Português do 3º ciclo com uma pós-graduação na área da mediação da leitura e responsável pelo projeto “Ler é Poder – minibibliotecas”.